Uma abordagem das humanidades digitais dos encontros coloniais e do conhecimento local nas narrativas de expedições portuguesas (1853-1888)
É fácil pensar a África Oitocentista como um espaço colonial disputado por potências europeias com as suas agendas políticas, económicas e científicas. Além disto, a historiografia de eventos como a Corrida a África por vezes reforça a ideia de um continente impotente particionado por estados imperiais. Se, por um lado, não podemos negar a força e a arbitrariedade da violência colonial, por outro, a História há muito desconsiderou as formas como os povos africanos resistiram. Este viés eurocêntrico é notável na História das Ciências que frequentemente associou às expedições científicas em África uma imagem idealizada que realça ideais de coragem, aventura e pioneirismo. Ainda hoje é possível encontrar os resultados alcançados pelos naturalistas descritos como descobertas realizadas por indivíduos extraordinários. Apenas recentemente a pesquisa académica começou a se distanciar desta compreensão ao reavaliar as narrativas escritas pelos viajantes e perceber que a ciência praticada em campo no século XIX era profundamente colaborativa. Em campo, os naturalistas dependiam de redes de indivíduos que contribuíam com atividades como a navegação por rios, a movimentação pelas florestas, a procura por abrigos, a comunicação com a população local e com o trabalho científico de coleta, identificação e preparação de espécimes.
CAPELLO, H.; IVENS, R. De Benguella às Terras de Iácca. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, p. 19.
CAPELLO, H.; IVENS, R. De Benguella às Terras de Iácca. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, p. 19.
Nesta pesquisa, analisaremos quatro expedições portuguesas a África enfocando a sociabilidade do trabalho de campo para revelar como grupos nativos auxiliaram os viajantes, especialmente na coleta de espécimes. Ao investigar como os agentes locais contribuíram para o sucesso alcançado pelos viajantes, pretendemos revelar que, apesar das assimetrias sociais no espaço colonial, grupos nativos participaram ativamente no processo europeu de conhecimento da natureza africana. Com isto, desmistificaremos a ideia do viajante heroico e solitário inserindo os naturalistas em processos sociais e históricos mais amplos, investigando como o conhecimento circulava entre império e colônia, compreendendo como as relações sociais eram formadas em campo e em que momentos os viajantes dependiam do apoio de redes locais. Além disto, também pretendemos lançar luz sobre os processos de formação das coleções e refletir sobre o papel destes agentes locais na formação do património científico europeu.
Selecionamos as expedições de F. Welwitsch (1853-1860), H. Capelo e R. Ivens (1877-1880 e 1884-1885) e H. Carvalho (1884-1888), viagens oficiais financiadas pelo governo português com o objetivo de explorar a paisagem natural do continente africano. Estavam, assim, imbuídas por ideias de colonização e faziam parte da estrutura que definia as atitudes europeias em relação à África. Outra convergência entre estes viajantes é terem visitado algumas das mesmas regiões em Angola com poucos anos de diferença entre si, o que significa que possivelmente estiveram em contato com alguns dos mesmos habitantes locais. Neste caso, será possível identificar agentes locais que constituíam pontos permanentes de apoio aos europeus em Angola, bem como refletir sobre quais qualidades os tornavam colaboradores frequentes em expedições científicas. Analisaremos os relatos escritos pelos naturalistas, assim como correspondências e artigos publicados em jornais contemporâneos às expedições. Empregaremos ferramentas computacionais, como programas de visualização de redes e softwares de criação de mapas georeferenciados para explorar como estas metodologias podem ser utilizadas como parte da pesquisa histórica e da comunicação pública dos resultados alcançados.
Um dos produtos esperados nesta pesquisa é uma plataforma online onde disponibilizaremos para o público académico e não especializado informações, mapas que recriam digitalmente os itinerários das expedições, grafos de redes sociais representando as interações entre os viajantes e os agentes locais, uma exposição virtual das ilustrações originalmente publicadas nos livros de viagem e atualmente em domínio público, e uma cronologia interativa inserindo as expedições no contexto da história de Portugal e Angola. Por crer que estes resultados podem contribuir para a reavaliação da participação de agentes locais nas expedições científicas e para uma maior compreensão da ciência Oitocentista, pretendemos levar estas considerações para públicos jovens ao planear uma oficina para discutir o tema em escolas utilizando uma perspectiva decolonial sobre a História das Ciências. Para tornar esta pesquisa possível, contamos com uma equipa multidisciplinar com experiência em História das Ciências, Museologia, Divulgação Científica, Humanidades Digitais e Ciências Biológicas.